Publicado em por Danuzio Neto

Minha mãe entendia tudo de economia doméstica

O texto a seguir foi escrito por Eduardo Affonso, que gentilmente o cedeu para ser publicado neste blog.

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Minha mãe entendia tudo de economia doméstica. Talvez porque fosse formada em Economia Doméstica, um curso então muito valorizado na finada UREMG (Universidade Rural do Estado de Minas Gerais), hoje UFV (Universidade Federal de Viçosa).

Sabia tudo de culinária. Os tempos, os preparos, os temperos. Matava a galinha – degolando-a enquanto a segurava pela cabeça e lhe pisava nas asas, aparando o sangue num prato fundo, esmaltado, adredemente preparado com um uma colher de vinagre – e nos enxotava de perto, dizendo que quando se tem pena a galinha demora a morrer. Só muito depois fui entender que ter pena era ter dó, e eu tinha – mas não perdia um daqueles assassinatos dominicais, acompanhando os estertores daquela cuja coxa eu comeria dali a pouco, observando como sua respiração se acelerava com o primeiro golpe e era perfeitamente sincronizada aos jatos do que logo seria o molho pardo. Exausta, exangue, a galinha era escaldada e aí é que eu entrava na história, na função de depená-la. Arrancava primeiro as penas grandes da asa – que depois serviriam para fazer cocar ou peteca – e deixava para o final as do papo, quase uma lã, de tão suave. Apalpava, por fim, o peito e as coxas da galinha quente e nua, com um frêmito que ainda não sabia o que era ou de onde vinha. E esperava que minha mãe a abrisse para de lá retirar o pingente de ovos em gestação, um de cada tamanho, em espiral. Esses ovos por nascer iriam para o meu prato (eu era o filho mais velho, tinha direitos de primogenitura) e também seria para o meu arroz a gordura amarela, benfazeja para minha asma (o colesterol ainda não tinha sido inventado).

Por que tudo isso agora, e com essa volúpia sanguinária vinda de mim, que me tornei vegetariano e renego o psicopata infantil que fui um dia?

Porque é domingo – o de verdade, não seus simulacros – e domingo tem cheiro de pena de galinha recém saída de seu banho fervente, gosto de arroz feito na gordura medicinal de galinha gorda, molho pardo – ou, eventualmente, sangue frito.

E porque, cansado da pia com louça suja, segui uma lição da economia doméstica, e guardei na prateleira de cima do armário tudo que não for estritamente necessário. Tirei de cena travessas, pratos, talheres. Deixei dois pratos – um raso e um fundo – um garfo, uma colher, uma faca. Mas deu um gatilho. Um garfo sozinho é de uma tristeza infinita. Tem um quê de Chaplin a solidão de um garfo. Deixei dois. Não que venha alguém almoçar neste domingo – não vem ninguém há muito tempo, desde quando o tempo tinha outro significado. Mas dois garfos, duas colheres, duas facas, me dão certo aconchego – não vou impor aos talheres o destino que escolhi para mim.

Não haverá mais pia cheia de louça por lavar, porque só há uma caneca, um copo (um fará companhia ao outro), a chaleira de ferver água para o café e a forma refratária de vidro, que também foi da minha mãe, e que é onde os congelados vão ao forno (domingo era dia também de arroz de forno, o arroz nosso de todos os dias que nesse dia vinha rosado de molho de tomate e enfeitado de petipuá, coberto de parmesão ralado e coroado com ovos em rodela).

Num canto do prato, vinha minha pequena joia, o pingente de ovos abortados, alguns ainda só gema.

Minha mãe abria pouco a geladeira: tirava tudo de uma vez, e, assim, economizava luz. Contava os passos pela cozinha – não andava para lá e para cá feito barata tonta – e assim economizava energia. Lavava tudo de uma vez, porque a água da lavagem dos talheres ajudava a lavar os pratos. Tudo – da galinha agarrada pelo pescoço até o pudim de leite moça da sobremesa – fazia parte da mesma sinfonia dominical. Tudo farto, e sem desperdício. Tudo orquestrado.

Aprendi economia doméstica antes mesmo de aprender a ler.

Na próxima viagem – quando voltar a haver viagens – eu conto como aprendi a arte de distribuir os volumes no bagageiro de modo absolutamente equânime, para que a rural, o aeruíles, o fusca, a variant – com minha mãe no banco da frente e cinco filhos no de trás – não perdessem a estabilidade nas curvas.

Lições do meu pai, o senhor da equidade.

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