Publicado em por Arthur Campos

Crônica – Comida

Eu poderia escrever sobre os prazeres da mesa como quem fala de um mundo de etiqueta e refinamento. Poderia descrever rituais nos restaurantes, pratos elaborados fazendo desenhos no céu da boca, vinhos harmonizados. Mas, não. Quero falar de comida como quem fala de amor. Permitam-me.

Comida, assim como música, tem o dom de evocar lembranças, desatar o fio da memória e encher a vida de sonhos ou de lágrimas. Cheiro de café irrompendo de manhã pela casa é minha mãe viva de novo. Basta fechar os olhos para vê-la. Feijão cozinhando, bolo caseiro, bolinho de chuva, tapioca e brigadeiro trazem de volta minha pátria distante, meus pais, avós, tias, filhos e irmãos. Junto vêm os almoços compartilhados, risos e até aquelas brigas de grande família, que quando a gente lembra, anos depois, acha engraçadíssimas e bobas.

Comida, pensam os tolos, é coisa só de boca, estômago e paladar. Zounds! Não é! Comida tem cheiro, a gente também come com os olhos e é bom ouvir o ruído de biscoitos crocantes mastigados, ou quando cravamos os dentes num pêssego e ouvimos aquele ploch sedutor. Um baile completo para os sentidos. Todos eles. Deixei o tato por último. Vou dar um parágrafo todinho para ele.

Gosto de comer com as mãos. Depois lambo os dedos de onde pingam sabores. É um ritual que me permito quando ninguém me olha. Pão quente, recém saído do forno, de onde escorre manteiga derretida – que prazer há em cortá-lo com as mãos e colocá-lo na boca, lentamente, pedaço por pedaço. Já as frutas suculentas, primeiro as apalpo e depois mordo delicadamente até o sumo escorrer pelo queixo. Pamonha doce preenche a boca inteira e deixa os dedos com uma camadinha de milho cozido. Eu poderia passar o dia inteiro falando disso!

Sou cozinheira amadora e intuitiva. Preparar alimentos é um momento em que flutuo num mundo só meu. Absorta, mergulho nos sabores, texturas e cheiros. É uma espécie de meditação. Desse momento de solidão e prazeres mínimos emergirá a comida que vai alimentar os que amo. Alquimia perfeita, na qual comida e sentimentos se combinam para fazer mágica de vida nos corpos de filhos, do meu amado e dos meus amigos.

Nos ouvidos sempre há um fone quando cozinho. Mozart e Vivaldi jamais saberão que já fizeram os melhores risotos de minha instável carreira. As guitarras do Metallica e do Dream Theater estiveram comigo na preparação de peixes e legumes. A feijoada nunca abriu mão de ser feita ao som de Paulinho da Viola. E já fiz sopa de cebola e quiches ao som de Piaf, Aznavour e Ben L’Oncle Soul. Para tudo o mais, Villa-Lobos. Infalível.

Cozinhar começa na seleção dos ingredientes. Há um prazer especial em escolher legumes e frutas no Brasil, onde o sabor, as cores e o aroma parecem muito mais intensos. Perdoem-me mexicanos, costarriquenhos e demais povos plantadores, mas vegetal brasileiro tem suíngue, samba no pé e rebolado de passista. Não existe coisa igual.

Frutas, por exemplo. Mangas, cajus, abacaxis e laranjas – que delícia é cheirá-las ou passar as pontas dos dedos por sua pele vegetal, sentindo as texturas, asperezas, ranhuras. E depois nelas se crava os dentes, com prazer antecipado. A língua percebe os sabores curtidos ao nosso sol dos trópicos e um arrepio percorre a pele. Sabor de fruta brasileira só não consta do Kama Sutra porque a geografia e o tempo não colaboraram.

Na cozinha, os olhos se deleitam com as cebolas roxas, a gema de ouro, o verde luxuriante de couves e rúculas. Cenouras alaranjadas, brancos nabos, vermelhos rabanetes. Longos, curtos, redondos, alongados na geometria saborosa da natureza.

Cortar e fatiar vegetais também é um outro momento profundamente prazeroso. A faca desliza pelo corpo das cebolas, dos tomates e dos pimentões. Gosto de escutá-la, sentir que não encontra barreiras ou que empaca aqui e ali. Bom perceber os micromovimentos.

Os temperos são um capítulo à parte. Aromáticos, embriagadores. Cominho, pimenta preta, sálvia, alecrim, coentro, salsinha, tomilho. Triturá-los em pilão, deixar as especiarias tomarem o ar é como se tornar sacerdotisa de uma religião perdida. Entram em cena para fazer alquimia, despertar os sentidos, fazer sonhar com outras terras e outros homens que também os experimentaram há milênios e se deliciaram. Uso-os cantarolando Scarborough Fair.

E nem falei dos dourados azeites a se derramarem sobre o corpo de vegetais, dos molhos de tomate e do perfume irresistível das folhas de manjericão caindo em slow motion sobre as massas. Ou do açúcar se misturando à manteiga; ou de uma xícara de chá que a gente aproxima do rosto, fecha os olhos e primeiro sente o aroma das folhas nascidas na montanha. Só então, se deve levá-lo aos lábios e permitir que a boca se torne morada dos deuses.

Fogão é caso à parte. Meu sonho é um dia ter (além de uma horta toda minha onde as alfaces e as cebolinhas brotem em verdejante festa) um fogão a lenha, daqueles de fazenda, que encharca de fumaça as comidas, dando-lhes um ar antigo, ancestral. Cheiro de árvore no prato. Poético, faz sonhar.

Comida é dádiva. Aproveite a estada por aqui e olhe-a, uma vez que seja, com a expressão de graça e paixão que dedica aos humanos.

Bon appétit.

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Imagem: Giuseppe Arcimboldo. Vertumnus, retrato de Rudolf II, Sacro Imperador Romano pintado como Vertumnus, o deus romano das estações, c. 1590-1.

Autora: Sonia Zaghetto


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